EM PROL DA INTEGRIDADE DO TERRITÓRIO DE PERNAMBUCO

EM PROL DA INTEGRIDADE DO TERRITÓRIO DE PERNAMBUCO

INSTITUTO ARCHEOLÓGICO E GEOGRÁPHICO PERNAMBUCANO

 

A Zona sertaneja pernambucana. – Sua exploração, conquista e colonisação. – Desmembramento de uma parte dessa região, temporariamente, para Minas Gerais e depois, provisoriamente, para a Bahia. – Iniciativa em prol da sua reivindicação pelo desapparecimento das causas que a isso determinaram – Legitimidade de Pernambuco sobre os territórios contestados,em face do seu direito, exuberantemente comprovado pela história e legislação pátrias.

Por F. A. Pereira da Costa

 

A zona sertaneja de Pernambuco, que forma a terceira em que se divide o seu território, caracterisada pela sua constituição geológica particular, clima e vegetação, comprehende toda a extensão territorial cujas águas vão ter ao rio S. Francisco, e se extende até os limites do Ceará para serra do Araripe e do Piauhy pela serra dos Dous Irmão; e outrora, caminhando  pelas serras do Gurguéa, do Piauhy, do Duro, e da Tabatinga, descendo no limite desta ultima pelo rio Carinhanha até sua desembocadura no S. Francisco, todo o território que ahi se comprehende, até as margens do grande rio.

A nossa zona sertaneja, na phrase do engenheiro Silva Coutinho. – é a pampa do norte, a região do cactus, das bromeliáceas e caudieiras, cuja vegetação, mais rara que no agreste despe-se das suas folhas, em grande parte pelo verão, conservando-se entretanto verdes algumas espécies, como a joazeira, a catingueira, o bonome e outras; por esse tempo seccando os rios, conservando-se apenas alguns poços, formados por qualquer obstáculo que impede o escoamento das águas ou excavadas pelos habitantes para o seu provimento d’agua.

O solo é seco e fértil, produz abundantemente optimo algodão, canna de assucar, cereaes e legumes; e o seu clima é quente e secco nos lugares baixos vulgarmente chamados Mimoso, porem mui temperado e sobremaneira agradável no começo do verão e durante a estação invernosa. É porém humido frio nas eminências ou chapadas das serras, vulgarmente chamdas Agreste. O ar é saudável e a excepção de algumas febres e defluxões reinantes em algumas epochas do anno, gosa-se de boa salubridade. Não existe no sertão moléstia endêmica, diz umillustre facultativo, e raras são as epidemias que lá chegão. Seria o paraizo terrestre se não fossem as horríveis secas a que é sugeito, e que tem por vezes aniquilado todo o gado, e teria igualmente aniquilado os homens se não fugissem do solo abrazado.

Sobre o clima do sertão encontra-se um excellente trabalho do Dr. Joaquim d’Aquino Fonseca, sob o titulo – Algumas palavras acerca da influência benéfica do clima do sertão de Pernambuco sobre a phthisica pulmonar, e da causa mais provável da freqüência desta affecção na capital da mesma província. – que vem publicado na Colleção dos trabalhos do Conselho Geral de Salubridade Pública da Provincia de Pernambuco, do anno de 1849.

Naquelle trabalho preconisa o seu autor a amenidade e excellencias do clima do sertão, que na sua opinião, não somente proveitoso aos doentes de tubérculos pulmonares, mas ainda de outras moléstias, onde experimentam alivio rápido, e por vezes a cura que nenhum outro meio é capaz de determinar.

É, porem, a phase da secca, quando é prolongada e rigorosa, a epocha afflictiva da zona sertaneja, mas ao cahir das primeiras chuvas, - as plantas reverdecem, cobre-se de gramíneas o solo e de qualquer parte brotam crystalinas águas, que vão engrossar as correntes; rapidamente desenvolvem os legumes, o gado se avesinha das casas, abunda o leite e  em breve amadurece o milho e o feijão; a felicidade é geral, o eo homem esquecido das calamidades passadas e alegre no meio da abundancia, não inveja a sorte dos habitantes das regiões mais favorecidas.

A criação do gado vaccum e cavallar, e a cultura do algodão e cereaes, são os principaes elementos de actividade e recursos da vida sertaneja; e graças ao seu excellente clima, costumes simples e actividade da vida pastoril, a população é vigorosa e bem constituída; e a raça branca apresenta-se ahi tão bela como em S. Paulo e Minas, ainda que predomine a cor morena pelas condições climatológicas da zona, mas de vivo rosado, e da mais bela physionomia.

A população do sertão é indolente, não tem pretenções a riquezas nem experimenta incentivos a melhorar de sorte vivendo em um âmbito em que são desconhecidas as ambições e as necessidades que acarreta o desenvolvimento do estado social, ella não se estimula pelo trabalho porque encontra na superambundancia produzidas pelas favoráveis colheitas elementos de sobra para sua subsistência, sem que tenha necessidade de afanoso labutar para adquirir meios de ocorrer a ela: as sobras exuberantes das colheitas, que não há onde guardar, ficam à disposição dos mais preguiçosos. Alli se não conhece o frio nem a necessidade de ter roupa para não se succumbir a elle: a regularidade das estações e a falta de humidade atmospherica fazem-lhes desconhecidas muitas das moléstias que são freqüentes na zona media e na inferior. Conhecem a syphilis em toda diversidade de formas e modos porque costuma Ella manifestar-se, conhecem também a febre maligna ou perniciosa, que provavelmente por falta de tratamento adequado tem mais curta que entre nós. Não conhecem quasi as inflamações sub-agudas do aparelho digestivo, nem respiratório. A anemia e a escrophula não predominam naquelas regiões. As moléstias em geral são agudas e de rápida desenvolução.

Toda essa extensa circunscripção territorial dos sertões de Pernambuco, foi primitivamente povoada de varias tributos de índios, entre as quaes se destacava pela sua ferocidade, a dos Tapuias, que ocupava a parte mais occidental de toda Ella.

Pela carta de doação regia da capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, lavrada em Evora aos 10 de Março de 1534, consta a sua extensão territorial costeira de sessenta léguas, desde o rio S. Francisco até o de Santa Cruz, - que cerca em redondo a ilha de Itamaracá; e mantendo aquella extensão, - entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme a dentro, tanto quanto poderem entrar e for de minha conquista; e com relação aos limites, ou linha de demarcação pelo lado do sul; -  entrará na dita terra e demarcação della todo o dito rio S. Francisco; e havendo na frontaria da dita demarcação algumas ilhas, hei por bem que sejam do dito Duarte Coelho, e annexar a esta sua capitania, sendo as taes ilhas até dez léguas do mar na frontaria, da dita demarcação a qual linha se estenderá do meio da barra do dito rio de Santa Cruz, cortando de largo ao longo da costa.

Eis a phraseologia textual da extensão e limites da antiga capitania de Pernambuco, segundo a carta de doação firmada pelo rei D. João III de Portugal em favor de Duarte Coelho.

Quasi um mez depois, expeede o mesmo rei a carta de doação da capitania da Bahia em favor de Francisco Pereira Coutinho, também lavrada em Evora, e firmada em 5 de Abril do referido anno de 1534, e nesse documento, respeitando e mantendo o limite sul da capitania de Pernambuco, diz El rei que fazia mercê ao sobredito Francisco Pereira Coutinho – “de cincoenta léguas de terra na costa do Brazil, as quaes se começarão na ponta do rio de S. Francisco, e correndo para o sul até a ponta da Bahia de Todo-los Santos, entrando esta terra e demarcação delles toda a dita Bahia, e a largura della de ponta a ponta se contará nas ditas cincoenta léguas, e não havendo dentro do dito limite as cincoenta léguas, se lhe entregue a parte que para comprimento dellas fallecer para banda sul.

Nada mais claro e positivo, isto é, - todo o rio de S. Francisco ficou pertencendo á capitania de Pernambuco, com todas as suas ilhas, e mais ainda, aquellas que existissem até dez léguas ao mar na frontaria da sua demarcação; e isto mesmo se respeita e mantem-se na subseqüente carta de doação da capitania da Bahia, determinando positivamente o régio instrumento, que, se por ventura não se contivesse as cincoenta léguas de terra doada dentro dos limites traçados, se lhe entregasse, a parte que para complemento dellas faltasse – para a banda do sul; - isto é, da ponta da Bahia de Todo-los Santos por diante, ficando portanto, illeso o limite meridional de Pernambuco pelo rio S. Francisco.

O Foral de Pernambuco expedido por D. João III em 24 de setembro de 1524, ratifica a doação da capitania a Duarte Coelho, e firma o seus limites do rio S. Francisco ao Santa Cruz. – “segundo mais inteiramente eh conteúdo, e declarado na Carta de doação da dita terra.”

Por Carta Regia de 10 de Maio de 1554 confirma o rei de Portugal na pessoa de Duarte Coelho de Albuquerque, filho primogênito de Duarte Coelho – a doação da Capitania de Pernambuco que tinha feito a seu fallecido pae em 1534; e novas confirmações teve depois, em favor do terceiro donatário Jorge de Albuquerque Coelho, pelos reis de Hespanha em 1603, e em 8 de agosto de 1628; e dest’arte, respeitados os seus limites, e inteiramente mantida a sua posse “de todo o rio de S. Francisco, e de todas as suas ilhas” até que cahiu  no domínio da coroa em 1654.

Em 1535, Duarte Coelho funda Pernambuco, e firma em Olinda, a futurosa e opulenta capital da colônia, atravez de mil embaraços e lutas horríveis com os índios, e despendendo grossos cabedaes no aprestadmento de navios e de tudo o mais que foi necessário para o seu estabelecimento, e colonisação de suas terras.

 

Firmada a paz com os índios Cahetés, e entrando desafogadamente na marcha regular dos negócios da colônia cuidou logo Duarte Coelho da conquista e exploração do rio de S. Francisco, e partindo com algumas náos, como narra o chronista Jaboatão, foi correndo as costas do seu districto, lançando dos eus portos a alguns francezes, que por elles achava ao commercio até no rio de S. Francisco, aque subiu algumas léguas.

Estavam, portanto, lançados os primeiros fundamentos da iniciativa pernambucana em prol da conquista e colonisação do extenso território que se desdobrara á margem septentrional do rio de S. Francisco.

A Duarte Coelho, sucede seu filho Duarte Coelho de Albuquerque que, segundo donatário de Pernambuco, o qual com igual empenho, e unido á seu irmão Jorge de Albuquerque, depois terceiro donatário, emprehende em 1560 a conquista do rio de S. Francisco, e nessa jornada, restaura algumas pequenas povoações que existiam já á sua margem, e levanta outras, em cujo numero figura a de Penedo, que o quarto donatário eleva a cathegoria de vila em 1636, e nessas expedições de exploração, e ao mesmo tempo de conquista dos índios Cahetés, se consumiram cinco longos annos, em cujas lutas percorreu o exercito expedicionário as montanhas e desertos dos sertões de Pernambuco, desde os seus limites sul pelo rio de s. Francisco até o extremo norte exterminando, por assim dizer,a valente tribo de tão belliciosos selvagens.

Pelos annos de 1572–1577, parte outra expedição exploradora do S. Francisco, sob o comando de Francisco Caldas, que foi provedor da fazenda real em Olinda, e de Gaspar de Athayde, auxiliados por uma forte columna de índios aliados, da tribo dos Tabajaras, sob o commando de um dos seus chefes, o valente Braço de Peixe, cujos exploradores – entraram muitas léguas pelo sertão, matando os que resistiam e captivando os mais; - porém a empreza foi de um completo mallogro pelo desleixo procendimento daquelles dous chefes, com este dos índios.

Em 1578 parte uma outra expedição com destino ao S. Francisco, commandada por Francisco Barbosa da Silva, muito pratico nas entradas dos sertões, e por Diogo de Castro, conhecedor da língua dos índios. Francisco Barbos seguio por mar, em um carvellão e entrou no S. Francisco, e ahi aguardou a chegada do seu companheiro, que partira por terr com um troço de setenta homens bem armados.

Reunidos em duas forças, internam-se pelo paiz, caminhando margem acima do grande rio; mas esta empreza foi de pouco resultado, os pernambucanos que escaparam do furor dos índios, mais pobres do que foram, como refere frei Vicente do Salvador.

Depois da conquista de Sergipe d’El-Rei por Cristovão de Barros, partiram mais duas expedições destinadas ás descobertas dos sertões, que frei Vicente do Salvador, que isto refere, não diz se foram de Pernambuco ou não; menciona apneas os nomes dos seus chefes, Christovão da Rocha e Domingos Martins, e diz que não tiveram ellas melhor sucesso.

Em meados do secuo XVII, depois da restauração de Pernambuco do domínio hollandez teve começo a distriuição de suas terras sertanejas, por grandes datas de sesmarias, geralmente conferidas aos seus descobridores, que situavam fazendas de criação de gado ou se empregavam no cultivo das terras, fundando pequenos núcleos de população, de onde vme, com o seu crescente desenvolvimento as florescentes cidades e villas da nossa zona sertaneja.

Essas descobertas de terras, e explorações de desconhecidos e dilatados territórios, ocupados por tribos de índios bravios, tão selvagens quanto valentes, eram feitas, ness época, por iniciativa particular, por esses celebres e temerariios bandeirantes, que reuniam e armavam gente, mantida á sua custa, e em columnas mais ou menos numerosas internavam-se sem norte e sem guia por esse vasto território á dentro em busca do desconhecido.

E assim, que em 1671, já as nossas conquistas sertanejas chegavam á grandes alturas da margem septrentional do rio de S. Francisco, attingindo, como ponto limitrophe conhecido hoje como o mais remoto, á Fazenda do Sobrado, pertencente ao capitão Domingos Affonso Sertão, tão celebre nas descobertas do território piauhyense, cujas terras lhe foram concedidas á titulo de sesmaria pelos governados de Pernambuco.

Essas conquistas sertanejas, que deram a Domingos Affonso o apellido Sertão, que trocou pelo de Mafrense, que tinha anteriormente, elevaram-no ao estado de avultada riqueza, bem como dos seus associados Francisco Dias de Avila, da casa da Torre, na Bahia, e Bernardo Pereira Gago.

Dessa epocha por diante começou a affluir gente para a povoação das novas terras descobertas, levantaram-se fazendas, campos de grangearia, e povoações, e as relações commerciaes que começaram pela praça da Bahia, não só pela facilidade de transito, como plea sua proximidade superior á de Pernambuco, muito contribuíram para o desenvolvimento dos nossos sertões, pela travessia e concurrencia constante de números comboios por direções diversas, que de retorno traziam o gado e os productos da nascente lavoura.

Em 1674, emprehende o mestre de campo João Fernandes Vieira, tão celebre nos nossos annaes da guerra hollanda, um excursão ás terras sertanejas, e expede por sua conta uma bandeira, que penetra até os centros do Rio Grande do Norte, em distancia de cento e trinta léguas do litoral; e dirigindo-se elle ao soberano para o auxiliar em sua empresa, concedendo-lhe certos favores vantagens, foi atendido pela Carta Regia de 3 de Março de 1676, que baixou em virtude de consulta do Conselho Ultramarino, permittindo-lhe mandar vir colonos da Ilha da Madeira para povoarem e cultivarem os sertões de Pernambuco, bem como para proseguir nas descobertas das suas terras; mas pela Carta Regia de 23 de Janeiro do anno seguinte, resolveu-se que os colonos viessem da ilha Gracina, e não daquella, pelos motivos constantes da mesma carta.

Em 1675 existia já uma capitania-mór no districto do Rio de São Francisco, cujos limites se extendiam até o Canindé, como se vê da carta de nomeação de Simão da Cruz Porto Carreiro, para exercer o cargo de capitão-mór conferida pelo governador geral D. Antonio Furtado de Mendonça Castro do Rio e Menezes, Visconde de Barbacena, em 8 de Agosto daquelle anno, a cujo governo competia então taes nomeações.

Proseguindo cada mais as emprezas de exploração e descobertas das terras sertanejas, mandar a carta regia de 28 de Março de 1692, dirigida ao governador de Pernambuco Marquez de Monte Bello, - que a proporção que se fosse reduzindo os índios do sertão ao grêmio da igreja, se fosse estabelecido aldeias para nellas se conservarem em doutrina, dirigidas por padres missionários, providenciando no mesmo tempo sobre os meios necessários para occorrer as despezas com semelhante serviço. – Consoante com esta idéa, baixou a carta regia de 27 de Dezembro de 1693, dirigida ao mesmo governador, ordenando-lhe que formasse povoações dos moradores espassos pelos sertões, e que organisasse regulamentos para o seu regimen, não só com referência ao político e civil, com ainda ao judiciário. Mas ao que parece, não foi aquelle governador solicito nas providencias recomendadas, e sem duvida, em vista de reclamações dirigidas ao governo da metrópole sobre o assumpto, baixou outra ordem em 27 de Novembro de 1695 reiterando a anterior, - “atalhando-se assim os males que resultavam da vida solta e da liberdade em que viviam os moradores espalhados pelos sertões.”

Pelos annos de 1694 a 1702, levantaram-se os indiso que occupavam todo o territorio que se extendia da Borborema ao Rio do Peixe, e unidos com os que occupavam os confins de Pernambuco, descem em guerra até o Pajahú, devastando as fazendas de criação de gado e os campos de granjearia que encontravam em sua marcha, atacando os viandantes, e causando grandes damnos e prejuizos aos colonos e ás nascentes povoacções, e particularmente ao commercio da praça da Bahia pelo prejuízo de avultadas fazendas e cabedaes, e pleo lucro cessante em consequencia das devastações de grande numero de povoados e fazendas, e da morte de seus proprietários, colonos e escravos.

Informado o governador geral D. João de Lencastro desta triste situação dos habitantes do sertão, em em face do enorme prejuiso que o levantamento dos índios causava ao commercio da Bahia, que pela facilidade de communicações e curta viação, suppria não só a extensa zona sertaneja de Pernambuco, como ainda as circumvisinhas do Piauhy e do Ceará, providenciou logo de modo conveniente, e incumbio ao coronel Manoel de Araujo, abastado fazendeiro do Rio de S. Francisco, de levantar gente e marchar contra os índios sublevados. Reune então o coronel Manoel de Araujo cento e cincoenta homens, arma-os convenientemente, marcha no encalço dos índios, bate-os em vários pontos, desaloja-os do Pagehú e leva-os de vencida até o território da Parahyba, onde encontrando forças sob o commando do capitão-mór Theodoro de Oliveira Ledo, e reunidamente, subjulgam-nos completamente. Pacificado os sertões escreve o nosso chronista Loreto Couto poderam sem contradição os portuguezes fazer suas habitações em todas as partes, augumentaram-se as fazendas de gado, crearam-se as povoações, multiplicaram-se as freguezias, e cada vez mais se augumenta mais em povo, riqueza e edifício.

Mas, um grande obstáculo, occorria ao desenvolvimento de progressos da colonisação da zona sertaneja. Os governadores e capitães generaes de Pernambuco foram fáceis e pródigos por demais na distribuição de suas terras em grandes sesmarias, de sorte que, quase toda a zona ribeirinha do S. Francisco até o limite do Piauhy e do Ceará, pertencia apenas a três indivíduos.

O governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro em carta dirigida ao rei em 1700 dizia-lhe:

“A casa da Torre, os herdeiros de Antonio Guedes de Brito, e Domingos Affonso Sertão, moradores na jurisdição da Bahia, são senhores de quase todo o sertão de Pernambuco”.

Francisco Dias d’Avila, o primeiro concessionario de grande sesmarias de terras no territorio de Pernambuco, concedidas  pelos seus respectivos governadores, já era fallecido em 1694; deixara porem um filho, de nome Garcia d’Avila Pereira que era então menor, ainda, como se vê de uma escriptura firmada por sua mãe D. Leonor Pereira Marinho, como sua tutora. V. Memorias históricas da província da Bahia, por Ignacio Accioly, T. I. p. 236, in fine.

Já anteriormente, porem, informado o governo da metropole de que os damnos espirituaes e temporaes que se experimentavam no estado provinham, em grande parte, da falta de povoação dos sertões, por pertencerem tão dilatado território a duas ou três pessoas particulares, que cultivavam apenas uma pequena parte das suas terras, deixando as demais devolutas e incultas, sem ao menos consentirem que pessôa alguma as povoasse e cultivasse, salvo alquellas que comprehendiam descobertas e conquistas a sua custa, defendendo-as do gentio, e pagando-lhes a dizima do foro de cada sitio; em vista desta circumnstancia, portanto, resolveu o governo pela Carta Régia de 20 de Janeiro de 1699 dirigida á Provedoria da Fazenda Real de Pernambuco, depois das considerações expedidas, quasi textualmente guardadas, - “que se mantivesse aos possuidores aquella parte das terras que conservassem povoadas e cultivadas por si, seus colonos, feitores ou enphiteutas; mas partidas por quem quizesse povoar, comntauto que cada lote não excedesse de três léguas e meia em quadra, mediante as contribuições do dizimo, foro e mais costumadas obrigações.”

Tendo já o governo mandado crear algumas freguezias no Sertão, com o fim de promover o seu povoamento e cultura de suas terras maou também por outra Carta Regia expedida na mesma data, dirigida ao governador da capitania Caetano de Mello e Castro, que em cada uma dellas houvesse uma vara de juiz, como os da Vintena, em Portugal, bem assim um capitão mor, com os demais cabos da milícia, com a obrigação de auxiliar o magistrado nas suas funções, e que os ouvidores e corregedores da comarca visitassem uma vez no seu triênio a esses moradores, fazendo correições; medida esta que foi tomada em virtude de uma representação dirigida ao rei – “sobre os danos que experimentavam no Estado pela falta de missões, e de quem administrassem a justiça aos que viviam em seus dilatados sertões em sua liberdade, commetendo tão exorbitantes excessos, que obrigavam aos que amavam a quietação a retirarem-se, ficando as terras só povoadas de malfeitores” – Note-se, porem, que por acto anterior, communicado ao governador Caetano de Mello e Castro por Carta Regia de 16 de Fevereiro de 1698, foi deliberado que houvesse nos sertões um juiz ordinário de cinco em cinco léguas, com jurisdicção de tirar devaças, preparar os processos e remettel-os ao ouvidor geral da comarca, medida esta que foi tomada com o fim de reprimir os crimes que frequentemente se praticava, e á impunidade em que ficavam os seus autores, com se declarava nas razões de ordem do alludido acto régio.

Em 19 de Fevereiro de 1700 baixa uma Carta Regia dirigida ao Governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, determinando que os missionários que partissem para o sertão á communicarem aos indígenas a lei de Deus, fossem acompanhados de tropas, afim de evitar-se a insolência dos bárbaros e os perigos a que se expunham os mesmos missionários.

Nessa epocha, apenas havia em toda a vasta circumcripção territorial da zona sertaneja, três únicas parochias erectas e duas por se erigir, em vista dos embaraços que oppunham os alludidos proprietários das suas terras, principalmente negando-se tenazmente a concederem para cada uma dellas um légua  de terra para o seu patrimônio, bem como uma outra para cada missão ou aldeiamento de índios Tapuias, não obstante repetidas ordens rágias para isso cederem, sob pena de perda total das suas sesmarias!

De semelhante procedimento pedio providencias o referido Governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, em carta dirigida ao rei em 28 de Junho de 1700; e submettido o assumpto ao Concelho Ultramarino que deu parecer favorável ás reclamações do Governador, em 24 de Setembro, baixou a resolução de 20 de Novembro, do mesmo anno, determinando perempetoriamente – “que se fizesse effectiva a acquisição das terras tanto para as igrejas como para os índios; que cada lote contasse de uma légua em quadro e não em circuito, para cada aldeiamento; que deveria cada um delles constar de cem casaes, situados á vontade dos mesmos índios, mas com approvação da Junta das Missões, sob pena de severa punição aos sesmeiros que á isso se oppuzerem, além da perda das suas datas.”

No seguinte anno de 1701, tendo o Governo em vista manter a estabilidade das povoações do sertão e o desenvolvimento da sua população, que se ia augmentando pela corrente de immigrantes que corria para as lavras das capitanias do sul, prohibio expressamente por Carta Régia de 7 de Fevereiro, - toda e qualquer communicação dos sertões de Pernambuco com as minas de S. Paulo, e que se não mandasse para ellas nem gado e nem mantimentos de qualidade alguma.

Em face de apertadas, enérgicas e positivas providencias, cederam, emfim, alguma cousa, mas bem á contra-gosto, os egoístas e ricaços proprietários das nossas terras sertanejas, que longe dos seus labores e dos seus perigos, fruíam seguros e tranquillos na capital da Bahia ou nas suas aprasiveis habitações campestres, das suas avultadas rendas, entregues ao fausto, aos prazeres e ás grandezas!

Haveria no procedimento dessa meia dúzia de indivíduos, oppondo-se tenazmente ao desenvolvimento colonial dos sertões de Pernambuco alguma causa de interesse político para não fazer perder o predomínio commercial da Bahia com aquellas regiões , e ainda mais além, até o Piauhy e o Ceará, pelas serras dos Dous Irmãos e do Araripe?

Entraria também em linha de conta, obstar com isso o desenvolvimento moral e material da altiva capitania de Pernambuco levando a civilização até os confins do seu vasto território, levantando núcleos de populaçã, desenvolvendo a indústria pecuária, a agricultura, fazendo caminhar toda essa sua actividade pela zona sertaneja, de fórma a encontrar-se com a que caminhava pelo litoral á unirem-se e formarem um todo compacto, homogêneo e forte, trazendo com isso uma tal ou qual preponderância que podesse eclipsar a Bahia no seu predomínio de capital do governo geral e de metrópole do Brazil?

É bem provável...

Vencidas todas as dificuldades pela enérgica attitude do governo da metrópole, ainda que no caracter de tregoa ou armistício, porque reappareceram depois as mesmas difficuldades, e ainda mais, chegaram até os nossos dias começou-se em Pernambuco e seriamente cuidar da catechese e civilisação dos índios, fundando-se aldeiamentos e missões por toda a parte de sorte que, convergindo de preferência as nossas vistas para o território do S. Francisco, em 1702 existiam já as missões de N. S. do Pilar, na ilha de Caripós, de Tapuias Caripós; a de N. S. do Ó, na ilha de Sorobabé, de índios Tapuias, orús, Brancararus; a de N. S. da Conceição, na ilha do Pambú, de Tapuias Cariris; e a de S. Francisco, na ilha de Aracapá, de igual tribu; em 1705, as de N. S. de Belém, na ilha Acará ou Axará, de Tapuias Porús, e posteriormente, até o ano de 1745, as de N. S. de Belem, na ilha Acará ou Axará, de Tapuias Porús e Brancararús; do Beato Serafim, na ilha da Vargem, dos mesmos índios; de S. Felix, na ilha dos Cavallos, de Tapuias Cariris; de Santo Antonio, na ilha do Trapuá dos mesmos índios; e de N. S. da Piedade, na ilha Inhamum, também dos mesmos índios. Todas essas aldeias e missões pertenciam ao termo do sertão de Cabrobó, e respectiva parochia, e eram dirigidas, umas por padres capuchinhos italianos do hospício de N. S. da Penha do Recife, e outras pelos religiosos franciscanos dos diversos conventos da capitania.

Posteriormente fundaram-se mais duas aldeias, uma na ilha da Assumpção, e outra na de Santa Maria, que prosperaram tanto, que foram erectas em parochia, e depois em Villa, tendo a primeira o titulo nobiliarchico de – Real.

Ao passo que o governo de Pernambuco, de accordo com a Junta das Missões se empenhava com todo o ardor e interesse na grandiosa e humanitária empreza da catechese e civilisação dos índios, convergindo agora as suas vistas para o Sertão das Rodellas, ou Alto Sertão do Rio de S. Francisco, conforme os documentos da epocha, cuja circumscripção territorial abrange toda a zona comprehendida entre a serra dos Dous Irmãos, conhecida, também pelas denominações de Serra Grande Vermelha, e do Piauhy; serras da Gurguéa do Duro e da Tabatinga, a encontrar o rio Carinhanha, em todo o seu curso até desembocar no S. Francisco, e descendo por este, até o Pajehu; não se descurava também o governo de outras providencias tendentes ao desenvolvimento da colonisação e cultura das terras sertanejas; e para este desideratum, começou a conceder grandes datas de terras por cartas de sesmarias para situações de fazendas de cultura e de criação  de gado; e de alguams dessas cartas, competentemente registradas na Secretaria do Governo, que nos parece de muita importância no actual momento, passamos a dar uma ligeira noticia.

Em 30 de Junho de 1707, concede o governador Sebastião Caldas ao capitão mor Athaonasio de Siqueira Brandão, morador no Rio de S. Francisco, freguesia do Rio Grande do Sul, (S. Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande) uma légua de terra em quadro, no Brejo Japoré, quatro léguas distante do mesmo rio de S. Franscisco.

Por carta de 1 de Fevereiro de 1708, do mesmo governador de Pernambuco, são concedidas duas léguas de terra na jurisdição do Rio de S. Fransico, aos padres reitores dos collegios dos Jesuitas da Bahia, e do Recife, - “do meio da Serra Marabá para a Serra Apresca entre as terras de Damião da Rocha e Fernão Mendes, e Francisco Coelho da Maia, e das terras que foram dos herdeiros de Belchior Alves Camello  pela parte do rio Utiúba por elle abaixo para a parte do S. Francisco, e pela parte do sertão com data de Damião da Rocha.”

A Gregorio de Souza Marinho concedeu o bispo governador interino D. Manoel Alvares da Costa, três léguas de terra em 1710, no sertão do termo do rio de S. Francisco, no sitio Puyú, cortando para a serra Guindalho”.

- Esta propriedade, e mais cinco fazendas, denominadas – Dous Riachos, Itabaiana, Caxoeira, Paca, Rio dos Cabaços e S. Perin, talvez situadas no mesmo sertão, forma adjudicadas por João Carlos Gomes de Antão, em janeiro de 1764, por 6:400$000.

Por carta de 13 de Março de 1727 concedeu o governador D. Manoel Rolim de Moura, ao Licenciado Jacinto Barbosa de Souza, sacerdote do habito de S. Pedro, morador na freguesia de N. S. da Conceição das Rodellas, três léguas de terra comprido e uma de argo. – “nos limites da dita freguesia, em o riacho chamado Tapuia, na roça do Poço do Jatobá, para baixo como seus logradouros e do Poço Verde e Taboleiro das Cacimbas, a qual parte pelo lado do nascente com terras do coronel Garcia d’Ávila , e das demais partes baldias e incultas.

Ao commissario da cavallaria do Rio de S. Francisco, João Dantas Aranha, capitão Manoel Braz Pereira, e Caetano Dantas Passos, concedeu o governador Duarte Sodré Pereira por carta de 16 de Março de 1733, seis léguas de terra no Sertão do Rio de S. Francisco, “no Porto da Folha da parte do Norte, pelo rio chamado Jacobina acima, de uma e de outra parte, nas cabeceiras das datas de Belchior Alves Camello.”

Cumpre agora, em vista do desenvolvimento chronologico que temos dado ao nosso trabalho, elucidar um ponto de muita importância para o assumpto em questão.

Os donatários da capitania de Pernambuco, em vista da grande distancia que vai do litoral ao extremo oeste do seu território, nos limites de Minas e Goyaz, e correndo pelo Carinhanha abaixo, todo o Rio de S. Francisco até a sua foz no Oceano, não tiveram tempo de realisar todo o seu reconhecimento, exploração e colonisação, attendendo-se, a que naturalmente, taes emprezas deviam gradualmente marchar do Leste para o Oeste, isto é, do litoral para o interior.

Em 1630, de facto, terminou o governo dos donatários, com a invasão hollandeza que teve lugar naquelle ano, e prolongou-se até 1654; e d’ahi por diante, exhausta a capitania de recursos e população pelos incalculáveis prejuízos que advieram da dominação estrangeira por tantos annos, não pôde prosseguir na exploração e colonisação do seu território, como se havia iniciado no período donatarial; e quando se foi retemperando de forças e recursos, novas dificuldades surgiram á absorver o governo em suas soluções.

Mal depunha as gloriosas armas ápos a sua libertação do lugo hollandez, em cuja campanha lutou, sem cessar, por nove longos annos, eis que surge potente a celebre republica dos Palmares, occupando já um extenso trato territorial, ameaçando alargar as suas conquistas, e talando as povoações visinhas com as suas correrias e depredacções.

De 1654 a 1697, quando se deu a completa destruição da republica dos negros dos Palmares, situada em território hoje ao visinho estado de Alagôas, quasi que não se cuidou em outra cousa em Pernambuco, senão em debellar essa Troya Negra, na phrase de Oliveira Martins.

Em 1710 surge a Guerra dos Mascates, em que echoou o primeiro brado separatista, e se ouvio a primeira palavra de republica no Brazil, e cujo mallogro, trouxe á Pernambuco os maiores prejuízos, e entorpeceu a sua marcha progressiva por muitos annos, pricipalmente até 1715, quando terminou o governo ferrenho e despótico do bárbaro e tyranno Felix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcellos

A Bahia, porém, da parte as duas tentativas de conquista pelos hollandezes, a primeira em 1624-1625, cuja occupação não durou um anno, e foi logo socorrida por tropas de Pernambuco e valiosos auxílios da metrópole; e a segunda que teve lugar em 1638, apenas por dias, não logrando o inimigo o seu intento, porquanto encontrou alli todo o exercito pernambucano, que providencialmente chegara dias antes , e isenta de convulsões políticas intestinaes, não encontrou obstáculo algum para desenvolver-se, progredir e engrandecer-se!

Demais, receberam em conseqüência da invasão hollandeza em Pernambuco, pujante e numeroso concurso de população e riqueza, pelas immigrações dos povos forçados a abandonar a pátria occupada por potente inimigo, com quem era impossível reconciliar-se pela distincção de raça, língua, religião e costumes; e dado mesmo facto de sua restauração em 1654, a quasi totalidade dos immigrantes alli ficaram, e dos seus labores e capitaes surgiram engenhos, fazendas, propriedades urbanas e ruraes, e é dahi que vem as famílias bahianas de origem pernambuca – Cavalcantis, Albuquerques, Barbalhos, Bezerros, Feios tantos outros.

Além disso, era a Bahia a capital do Estado do Brazil, sede do governo geral, depois vice-reinado, a metrópole eclesiástica, séde dos tribunais e repartições superiores de todos os ramos da administração pública, e donde nos vinha, até certo tempo, mesmo, as nomeações de meirinhos, carrascos, e capitães de campo; com o indivíduos competentemente providos de taes officios! E portanto, com elementos de vida official superior, que dava ensanchas para prosseguir na exploração e conquista do seu território sertanejo, occupado por hordas de índios bravios; sendo ainda digno de ponderação, que pela sua posição geographica, consideravelmente afastada do ponto oriental em jaz Pernambuco, encurtava em mais de metade a distancia que vai do litoral aos seus limietes de Oeste, comparativamente com aquelle estado!

É portanto, por todo esse conjuncto de circumstancias, cada qual mais accentuada e digna de nota, que a Bahia foi dilatando as suas conquistas e explorações terrietoriaes, próprias; e chegando ás margens do rio S. Francisco, entendeu ir mais além, avassalando o território pernambucano que se extende da margem esquerda do grande rio por diante, até os limites de Goyaz, de Leste a Oeste, e da margem esquerda do rio Carinhanha até os limites da Villa da Barra, muito além do riacho Mocambo, no rumo Norte a Sul, pouco lhe importando a expressa, clara e terminante linha divisória das suas capitanias, determinada pela carta de doação de Pernambuco a Duarte Coelho em 1534, mantida e respeitada pela carta de doação da Bahia a Francisco Pereira Coutinho, no mesmo anno,  e ainda por outros actos régios posteriores, como já ficou demonstrado, bem como no ecclesiastico, pela Bulla de criação do bispado de Pernambuco, em 1676.

A mais remota noticia que temos do facto material da occupação do nosso território d’alem S. Francisco, pela Bahia é referente a criação de um arraial de índios mansos que o governador geral D. João de Lencastro mandou erigir nos últimos annos do século XVII para fazer face ás constantes invasões dos índios Acaroazes e Mocoazes, sobre os estabelecimentos pecuários da população civilisada, e por este e outros factos que não adianta externar, allega hoje a Bahia que - “o território em que se acha a cidade da Barra, bem como todo o da margem esquerda de S. Francisco, conhecido por Sertão de Rodellas foi primitivamente pertencente a Bahia, que o colonisou e administrou, fundando D. João de Lencastro nem só o alludido arraial de índios mansos de que surgio a actual cidade da Barra, como as outras de Campo Largo, Pilão Arcado etc.

Ah! Os inglezes não discutem melhor as suas estultas pretenções de rapina e expoliação das terras africanas, nem justificam melhor o seu direito sobre a posse e occupação da nossa ilha da Trindade!...

Apezar da invasão do nosso território d’alem S. Francisco pela Bahia, da sua mansa e pacífica ocupação, da sua colonisação e cultura por largos annos, em toda essa vastíssima zona, cavillosamente, machiavelicamente considerada res nullius, e portanto, do primeiro occupante; apezar mesmo de toda a nossa inactividade em face das viciscitudes e situações criticas por que passou a capitania, como vimos, chegou em fim, a hora da reparação e Ella foi solene e completa!

Desenvensilhado o governo de Pernambuco das difficuldades e crises por que passou a capitania, o que abrange num longo estádio de quasi um século; protesta contra a expoliação das suas terras; reclama energicamente em prol da sua integridade territorial; prova exuberantemente, juridicamente, a procedência e justiça da sua pretensão; e ouvidas ambas as partes contendoras e convenientemente estudada a questão no Conselho Ultramarino, cujo tribunal, em sua esphera especial de acção, entendia sobre todos os negócios do Brazil, baixou, em fim, por aquelle mesmo Conselho, a Provisão Regia de 11 de Janeiro de 1715, segregando da capitania da Bahia e restituindo á Pernambuco o território expoliado do Sertão das Rodellas, que depois foi denominado Comarca do rio de São Francisco, bem como separando-o da jurisdição da Villa da Jacobina, a que estava reunido!!!

Eis ahi os fundamentos jurídicos das pretenções da Bahia, em favor de sua posse primitiva sobre o territorio em questão, quando não se trata de cessão nem de encorporação, do mesmo território ao de Pernambuco, ditadas por uma conveniência qualquer, o que neste caso seria reconhecer á Bahia a legitimidade da sua occupação e posse primitiva, mas sim da restituição do alheio, em vista do exclusivo e incontestavel direito que cabia á Pernambuco na reivindicação daquelle território, como parte integrante e complementar da zona traçada na carta de doação á Duarte Coelho, e confirmada por subsequentes actos régios, de igual força jurídica!

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Vejamos agora, como se expressa á respeito do facto da occupação do nosso território do alto S. Francisco pela Bahia, e da sua reversão á Pernambuco, um juiz insuspeito, um espírito recto e esclarecido, um balriano illustre, o Exm. Sr. Desembargador Thomaz Garcez Paranhos Montenegro, no seu precioso livro – A Provincia de a Navegação do Rio S. Francisco, impresso na Bahia em 1875:

“Descoberto o Brazil em 1500, foi o seu território dividido em capitanias e estas concedidas a diversos donatários.

“Por carta regia assignada por D. João III, datada de Evora, em 10 de março do 1534, foi feita a Duarte Coelho Pereira a doação da Capitania de Pernambuco, entrando na dita terra e demarcação della todo o rio de S. Francisco.

“Ou pela distancia em que ficava este território da Capital, ou pela dificuldade de comunicações e talvez ausencia de estradas, ou porque, pelas diversas annexações que foram tendo posteriormente lugar, pertencesse também a esta Capitania os territórios, de que se compõem hoje as Provincias do Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba e Alagoas, volvessem o donatário e dpois os governadores a sua attenção para tão extenso litoral, e abandonassem o centro, de qual pouco proveito podiam tirar, ou outro qualquer motivo, o certo é que a Bahia conquistou e colonisou este território, e baseado no uti possidetis, - julgava-se com direito a elle, como de facto governou-o até 1718, em que o Capitão General de Pernambuco obteve a annexação ao seu governo do alto sertão do Rio de S. Francisco, até então sujeito á Bahia.”

Dessa epocha por diante cessaram as contestações e a capitania de Pernambuco ficou com os seus limites, natural e legitimamente fixados com a visinha da Bahia, e d’est’arte são accordos todos os monumentos que nos restam da sua antiga fixação.

Em 26 de Janeiro de 1704 baixou uma Carta Regia pedindo informações, sobre quaes eram as capitanias sugeitas á jurisdicção e demarcação do governo geral da Bahia, e das que pertenciam ao do Rio de Janeiro. Em 9 de Julho do mesmo anno responde o governador D. Rogrigo da Costa, dizendo:

“As capitanias que no secular estão sugeitas a este Governo Geral da parte Sul, são as do Ilhéus, Porto Seguro, Spirito Santo, e S. Vicente, em que incluem nas Villas de S. Paulo, Santos e as mais annexas a Ella: do Norte, a de Sergipe del Rey, Parahyba, Rio Grande e Rio de São Francisco, e assim também o são Pernambuco, e Rio de Janeiro”.

“As que pertencem a este Arcebispado, é a dos Ilhéos, Porto Seguro, Sergipe del Rey e esta da Bahia – que comprehende até o Rio de S. Francisco da parte do Sul, que é a sua divisão, - na forma que declara o Padre Jacobo Cocleo da Companhia de Jesus no papel que com esta remeto.”

“E para maior clareza deve S. Magestade informar-se do governador, e Capitão Geral, que deste Estado D. João de Lencastro, que tem o Mappa desta Capitania, e da maior parte do mesmo Estado, feito pelo dito padre Jacobo Cocleo”.

O precioso inédito – Discripção de Pernambuco – escripto em 1746, tratando dos Rios que regam o paiz da Capitania de Pernambuco mencionava o de S. Francisco, e referindo-se aos seus tributários, chega, em fim, ao Carinhanha, - a extrema do governo de Pernambuco com o de Minas.

O governador e capitão general de Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro em officio dirigido ao ministro Visconce de Anadia em 22 de Julho de 1805, propondo a creação da Comarca do Sertão, diz o seguinte: - “O rio de S. Francisco divide esta capitania da Bahia desde a sua foz até a confluência do Carinhanha, aonde acaba Pernambuco; e pelo mesmo Carunhanha na sua parte inferior confina Pernambuco com Minas Geraes e na parte superior com Goyazes...” O mesmo governador em outro officio dirigido ao referido ministro em 9 de Março de 1806, diz terminantemente que a Bahia – não tem um palmo de terra na bando de cá do rio S. Francisco; isto é, da margem esquerda, porquanto Caetao Pinto escrevia de Pernambuco.

O conheceido cosmographo José Fernances Portugal em sua Carta geographica da Capitania de Pernambuco, organisada em 1807, assignala como seu limite sul – O Rio de S. Francisco, que a divide pelo extremo meridional com a Capitania da Bahia, desde a sua foz até a confluência do Carunhanha.”

O autor de um bello trabalho – Revoluções do brazil, escripto pelos annaes de 1816, tratando dos limites meridionais de Pernambuco no artigo referente a sua discripção geographica, diz o seguinte: - “Da parte do Sul segue a Capitania de Pernambuco a margem esquerda do Rio de S. Francisco, buscando uma curva irregular o 14°40’ de latitude e 338°45’ lugar em que o Rio Carinhanha, e vae confinando com Minas Geraes até encontrar o 327° de longitude.”

Para que mais?

Reatemos, porem, o interrompido fio da nossa digressão histórica, em obediencia á ordem chronologica, incidentemente interrompida.

Em 1717 houve um levantamento geral dos índios no Sertão, os quaes ainda em seu estado de barbaria, desceram das suas aldeias e atiraram-se implacáveis sobre as nscentes povoações e fazendas, roubando-as, matando os seus moradores e escravos, e commettendo toda a sorte de crimes; porem, graças as providencias immediatas e enérgicas do governador Manoel de Souza Tavares, foram contidos os selvagens e não mais inquietaram os moradores sertanejos.

Renascendo a paz e a tranqüilidade, volveram os laboriosos habitantes aos seus trabalhos agrícolas e pastoris e a toda sorte de actividade; e assim começaram a progredir e engrandecer-se esses pequenos nucleus de população que pela sua evolução progressiva constituem hoje as nossas villas e cidades sertanejas; e foi assim, que, já em 1746, segundo Loreto Couto, passavam dos sertões de Pernambuco para os da Bahia e Minas, grandes comboios de gado vacum e cavallar, que de retorno traziam gêneros e fazendas de toda a espécie.

Em 1740, em virtude da Provisão Regia de 13 de Outubro do anno antecedente alguns abastados moradores de Pernambuco, entre os quaes Manoel Fernandes Lavado e João Baptista Rodrigues, fundam uma fabrica par a extracção e preparo do salitre,junto ao rio de S. Francisco, a qual não foi adiante pelo pouco resultado que deu.

Em 1770 era bastante lisongeira a situação dos nossos sertões, pela sua crescente população, riqueza e commercio, o qual, em grande parte, era feito por intermédio da praça da Bahia, cujas mercadorias conduzidas em grandes comboios atravessando o S. Francisco, abasteciam não os centros populosos de Pernambuco, como ainda iam mais alem, ao Ceará, ao Piauhy. Mas todo esse commercio era feito por contrabandistas, que dirigiam-no pelo S. Francisco, em vista da facilidade e falta de fiscalisação que encontravam por aquela viação, sendo digno de nota, como se expressa o governador de Pernambuco Manoel da Cunha Menezes em carta dirigida ao rei em 8 de Fevereiro daquelle anno – que os capitães mores locaes, os regentes e directores de povoações, eram os primeiros empenhados naquelle illicito commercio.

Caminhava, portanto, em marcha crescente e evolutiva a extensa zona sertaneja de Pernambuco, com o desenvolvimento da sua população, e da sua vida de actividade, principalmente agrícola e pastoril; e dest’arte, o desenvolvimento commercial em toda Ella, por esse mutualismo de transações pelo consumo de mercadorias e venda dos productos territoriaes, em cujo transito penetrava-se a longínquas paragens, cortando-se todo o território em direcções diversas.

Flores, Tacaratú e Cabrobó, foram elevados á categoria de Julgado, cada qual com o seu competente juiz ordinário, com residência na sede dos respectivos termos; as povoações de índios, out’ora aldeias situadas nas ilhas da Assumpção e de Santa Maria, no rio São Francisco tinha sido já creadas em villas; e em 1786 erige-se mais um Julgado, na florescente povoação da Carinhanha, que prende a sua origem á uma aldeia de índios Caripós, que estabeleceu em tempos remotos, sob o orago de S. José.

Em meados do século XVIII, o arrayal da Barra situado na confluência do Rio Grande com o S. Francisco, era já de muita importância pelo seu desenvolvimento commercial, população e riqueza, graças a sua magnífica situação geographica, pelo que tornou-se o empório de commercio sertanejo, pelo cruzamento dos grandes comboios que atravessavam em direcções diversas os extremos de Pernambuco e Bahia, até Minas e Goyaz, o Piauhy e o Ceará, e á outros elementos próprios com um clima salubérrimo e solo fertilíssimo, que alem das producções peculiares das Zonas tropicaes, pres-se também ao cultivo de vários fructos europeus, particularmente da uva, que produz excellente e abundantemente; mas apezar de taes vantagens para o trato agrícola, a criação de gado de  toda a espécie, absorvia de preferência a actividade dos laboriosos sertanejos das Rodellas, o que ainda hoje se nota, porquanto a industria pastoril é ahi feito em grande escala, ao passo que a agricultura mal chega para abastecer os mercados locaes.

Creada a freguezia sob o orago de S. Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul, dirigiram-se depois os seus habitantes ao soberano, impetrando a sua elevação á categoria de vila e bem succedidos em sua aspiração jsutissima, baixa a Resolução Regia de 1.º de Dezembro de 1752, dirigida ao governador geral do Brazil o Conde de Attouguia, porquanto, atendendo o governo da metrópole a que a freguesia da Barra ficava muito próxima á Villa e comarca da Jacobina, na Bahia, determimou que fosse a nova vila encorporada na parte judiciária áquella comarca, em virtude do que, ordenou o Conde de Attouguia ao respectivo ouvidor, o Desembargador Henrique Correia Lobato que fosse proceder a instalação da Villa, o que executou aquelle magistrado no dia 23 de Agosto de 1753, ordenando para seu termo todo o território que se estende de trinta léguas acima do Joazeiro até a margem esquerda do Carinhanha. 

Assim permaneceu a Villa da Barra, por alguns annos, pertencendo – somente, quanto ao judicial, - á jurisdiçcção da Bahia; e se attender-mos a que então, havia apenas uma única ouvidoria e comarca em Pernambuco, cujus ouvidores residiam em Olinda, ora no Recife, e portanto, o quanto sofriam os habitantes d’aquellas remotíssimas regiões, se tivessem de procurar remédio ás suas pendências judiciárias e outros actos da vida civil em paragens tão distantes, cujo percurso se conta a centenas de léguas, tendo tão próxima a Villa e comarca da Jacobina, onde chegavam – apenas atravessando o Rio de S. Francisco – verificarse-há, que o acto régio em questão foi o mais conforme possível com os interesses dos próprios habitantes da villa pernambucana de S. Francisco da Barra!

E semelhante medida não era uma cousa nova nos tempos coloniaes, e nem por isso, factos idênticos, constituirão nunca argumento para allegação de posse territorial em favor daquelles termos ou comarcas, que tinham sob a sua jurisdicção judiciária localidades estranhsa, e até capitanias differentes, como no caso vertente! Os procedentes são innumeros, e entrenós mesmo são elles notados em varias localidades, povoações, villas, até mesmo cidades, como todo mundo sabe e não vem agora ao caso particularizar.

Mas, a Villa da Barra, apezar daquella extranha jurisdicção judiciária, continuou a permanecer quanto ao ecclesiatico, civil e militar, sobr a natural e legitima jurisdicção de Peranambuco.

Elevado ao governo da capitania de Pernambuco o Dr. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, depois Marquez da Praia Grande e senador do império, ao deixar o cargo de governador da capitania de Matto Grosso, que exercia, par vir se empossar neste outro de cathegoria superior que lhe acababa de se conferido, entendeu de fazer a sua viagem por terra, naqual consumiu nove mezes completos percorrendo seiscentas e setenta léguas de caminho, desde Cuyabá até o Recife, como diz elle próprio em officio dirigido ao ministro Visconde de Anadia, dando conta da sua chegada e posse do seu novo governo. 

No longo percurso da sua viagem, intelligente, illustrado e dotado de gênio perspicaz e observador, como era, estudou Caetano Pinto a vida precária dos nossos sertões, as suas mais palpitantes necessidades, e assentou logo nas meidas mais urgente á tomar em beneficio desse povo e dessa terra immensa que vinha governar.

Estacionando, em sua jornada, na Villa da Barra do Rio Grande, ahi apreciou

De perto uma questão sobre a posse das ilhas do rio S. Francisco, que em 1803 agitára o ouvidor da comarca da Jacobina Dr. José da Silva Magalhães, por occasião da correição que fez no território pernambucano d’allém S. Francisco de sua jurisdicção judicial.

Ahi mesmo, em princípios de 1804, depois de pleníssimo conhecimento do facto, recebeu o governador uma representação dos habitantes da villa queixando-se das violências do sobredito ouvidor; e descendo o rio, ao prosseguir a sua viagem em demanda do Recife, aportou á Ilha do Miradouro, que então constituía o ponto litigioso, onde lhe repetiram as mesmas queixas os principaes habitantes insulares, entregando a Caetano Pinto uma representação em que suplicavam a proteção do seu governador – “contra um ministro que por paixões partidárias os queria sugeitar á diversa capitania, E PRIVAL-OS DO HONROSO NOME DE PERNAMBUCANOS, QUE ELLES COM TANTA GLORIA TINHAM HERDADO DOS SEUS MAIORES.”

Daquella ilha, dirije então Caetano Pinto um officio ao ouvidor da Jacobina, pedindo informações das ocorrências, dos fundamentos das suas pretenções, e ao mesmo tempo que lhe remetesse as ordens regias com que pretendia justificar o bom direito da sua causa. Respondeu elle que o faria da cabeça da comarca, onde tinha o seu archivo, lembrando-se, entretanto, como aparecia o governador, - “de um § da Instituta, que seria aplicável para regular os direitos e o domínio de dous particulares, ou de duas nações mas alheio e extranho para a divisão de duas capitanias pertencentes ao mesmo Soberano.” – O ouvidor, porém, não respondeu da cabeça da comarca, como promettera!...

Chega, enfim, Caetano Pinto ao Recife, toma posse do governo da capitania no dia 24 de Maio de 1804, como vimos do seu officio de communicação á corte, e em 11 de Março do anno seguinte dirige-se ao governador da Bahia Francisco da Cunha e Menezes, sobre a estulta pretensão do ouvidor da Jacobina, das violências que praticára elle em sua correição na villa da Barra, remettendo-lhe por copia a carta que dirigiu á Câmara da mesma Villa, e provando exuberantemente o bom direito de Pernambuco naquella contenda, conclue pedindo providencias á respeito, intervindo o governador geral no intuito de fazer cessar as arbitrariedades commettidas por aquelle magistrado.

O governador da Bahia também por sua vez, não se dignou de responder ao seu collega de Pernambuco, porém, é obvio, ordenando ao ouvidor de Jacobina que lhe informasse circunstanciadamente de todas as occurrencias, recebeu d’aquelle magistrado um longo officio datado de 30 de Julho, em que elle a seu modo narra todas as occurrencias, e com uma jurisprudência propriamente sua, discute a questão de direito em favor da Bahia.

 

Com taes elementos dirige-se o governador geral da Bahia ao governo da metrópole, dando conta da reclamação de Caetano Pinto, cujo assumpto foi submetido ao Conselho Ultramarino; mas emquanto não se decidia a causa naquelle tribunal resolveu o governo determinar, que os districtos em questão – ficassem interinamente pertencendo a capitania da Bahia, em que até então se reputavam encorporaos, segundo se deprehende de uma certidão que o respectivo governador juntara no seu officio; o que foi communicado ao governador de Pernambuco para sua intelligencia por Aviso do ministro Visconde de Anadia, de 27 de Novembro de 1805.

Caetano Pinto, porém, apesar de ignorar as razões em que se firmou o seu collega da Bahia na representação que dirigiu ao governo da metrópole, porquanto não se communicára com elle sobre a questão, nem tão pouco da corte se lhe pediu informação alguma, remettendo-se-lhe os papeis em original ou por cópia; mesmo assim, dessa absoluta igonorancia das occurrencias, não receiou entrar na contenda, e em 8 de Março do anno seguinte respondeu ao Aviso em extenso officio dirigido

Ao ministro, a quem pede, por mercê, o mandasse reunir ao do governador da Bahia, e a qualquer informação a que se procedesse, para que a questão – “possa ser decidida com pleno conhecimento da causa, e se fazer a necessária combinação das razoes que se produziram por parte da capitania da Bahia, com os que produzia em favor de Pernambuco.”

Caetano Pinto discute então a questão com toda a proficiencia, e em apoio dos seus argumentos junta uma serie de importantíssimos documentos, em que a procedencia e legitimidade dos direitos de Pernambuco se tornavam exhuberantemente firmados, inconstestavelmente comprovados.

Caetano Pinto, porem, prossegue ns suas investigações histórico-judicas sobre a questão, e colhendo mais outros subsídios, dirige-se de novo ao ministro, por officio de 9 de Março, enviando-lhe mais outros documentos; e o caso é que, que a papelada da Bahia ficou dormindo o somno eterno nos archivos do Conselho Ultramarino, e a questão foi decidida quatro annos depois em favor de Pernambuco, com a criação da Comarca do Sertão, como vai se ver.

Quando o governador Caetano Pinto recebeu o Aviso de 27 de Novembro de 1805, já em 22 de Julho se havia dirigido ao mesmo ministro que o expediu, propondo a creação de uma nova comarca em Pernambuco, em cuja peça expõe a triste situação dos nossos sertões, discute as vantagens da proposta que fazia e apresenta os meios de solver todas as difficuldades que porventura se antolhassem á obstar a sua acquiescencia por parte do governo da metrópole.

Não foi porem attendido.

Decorreram-se quatro longos annos, e quando surgiu a epocha em que a tristissima situação política de Portugal impelliu a sua corte para o Brazil, e a humilde colônia de outr’ora passou a ser a sede da metrópole e da monarchia portugueza, e portando, attendidos todos os meios de elevar o paiz, de o engrandecer e prosperar, coherentemente com a elevada hierarchia política a que tinha attingido, dirige-se de novo Caetano Pinto ao príncipe regente solicitando a creação da nova comarca, de acordo com o plano traçado em sua primeira proposta, e teve então a satisfação de ver coroado de bom êxito os seus tão justos quão nobilíssimos empenhos. 

Por Alvará com força de Lei de 15 de Janeiro de 1810 foi creada a Comarca do Sertão de Pernambuco, comprehendendo o seu termo todo o território que se extende da Ribeira do Moxotó até ao rio Carinhanha, e da margem esquerda do rio S. Francisco até as serras limitrophes de Goyaz e Piauhy. Na comprehensão deste termo ficaram a Villa de Cimbres e os Julgados de Garamhuns, Flores, Tacaratú, e Cabrobó; a Villa de S. Francisco da Barra do Rio Grande e as povoações de Pilão Arcado, Campo Largo e Carinhanha, que forma desmembrados os primeiros, da antiga comarca de Pernambuco, e os últimos, da comarca da Jacobina, da Bahia. – “E porque a Villa da Barra do Rio Grande, diz o Alvará, pertencente á Capitania de Pernambuco, era da correição da Jacobina, por estar mais próximos a Ella, do que a cabeça da comarca respectiva, (que a de Pernambuco) fica pertencendo a nova Comarca, visto que cessão os motivos referidos.”

O mesmo Alvará creou na comarca os officios de escrivão do crime, e de meirinho; elevou á categoria de Villa as povoações de Flores e de Pilão Arcado  ordenando que o ouvidor nomeado as installasse; e creou os cargos de juízes ordinários na vila da Barra e nas duas que mandára erigir, abolindo os que haviam com jurisdicção menos que ordinária, porém mais ampla que as dos Vintenários.

Nomeado ouvidor e corregedor geral da nova comarca o Desembargador José Marques da Costa, por Decreto de 5 de Fevereiro do mesmo anno, coube-lhe procecer a sua installação solemne, bem como a das villas criadas cujas instrucções recebem do governador de Pernmabuco em officio de 13 de Setembro. 

D’est’art desaparecerão todas as duvidas e contendas com relação aos nossos limites pelo S. Francisco – Todo o território pernambucano que se desdobra dos limites da Villa da Barra com as da de Cabrobó, que são hoje os de Petrolina, até os da nova villa de Pilão Arcado mais alem ainda, os da povoação de Carinhanha, pelo rio deste nome, que pertencia, quanto ao judicial, apenas, a capitania da Bahia, como parte integrande do termo da comarca da Jacobina, volveram à jurisdicção judiciária de Pernambuco, a única que lhe era extranha!

Eis, portanto, a esperada solução promettida pelo Aviso de 27 de novembro de 1805.

A capitania de Pernambuco, porém, não ficou estacionaria; e mais tarde, o seu progresso, população e riqueza, e outros elementos de ordem superior, determinaram a criação de mais uma comarca, a de Olinda, por Alvará de 30 de maio de 1815, da qual foi primeiro ouvidor o Dr. Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, depois senador do império pela província de Pernambuco; e após cinco annos, a de uma outra, a Comarca do Rio de S. Francisco, pelo Alvará com força de Lei de 3 de junho de 1820, desmembrando-se todo o território necessário para compor o seu termo, da Comarca do Sertão de Pernambuco, traçando-se-lhe como limites, os da villa de S. Francisco

Da Barra com os da de Cabrobó, e d’ahi até a margem esquerda do rio Carinhanha, comprehendendo toda essa imensa zona os termos das villas de S. Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande, designada pelo Alvará para sede da comarca, de Pilão Arcado, e de Campo Largo, elevado então a categoria de Villa, bem como a povoação de Carinhanha que á esse tempo já constituía uma parochia, criada no ano de 1813, cujo acto régio baixou em virtude de solicitações e empenhos do governador de Pernambuco Luiz do Rego Barreto, medida esta aliás, já cogitada pelo seu antecessor Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que em 1810 proposera ao governo a criação da dita comarca.

Proclama-se em 1822 a independência do Brazil, e a mais rica, vasta e importante colônia portugueza, assume no mappa das nações como um dos mais bellos impérios do mundo.

Mas, aos hymnos de alegria pela redenpção da pátria, succedem-se logo após, as notas angustiosas e tristes em face dos actos de prepotência e tyrania por esse mesmo príncipe em cuja fronte collocaram os brazileiros a bella e refulgente coroa do império adamantino!

A um desses actos, o golpe de estado da dissolução da Assembléia Constituinte em 1823, protesta Pernambuco com as armas nas mãos; e quando o imperador abandona a sorte das províncias aos seus próprios recursos ás ameaças do governo portuguez de uma forte expedição militar para quebrar a independência do império, e recolonisar o Brazil; e o seu Defensor Perpetuo concentra todas as suas vistas, todos os meios de defeza somente sobre a capital do Rio de Janeiro, cuidando, portando, unicamente da sua própria defeza e salvação, Pernambuco, repetimos, levanta o seu estandarte republicano, e proclama a Confederação do Equador, que echoou enthusiastica desde a Parahyba até o Piauhy! 

Desapparecidos os temores da invasão portugueza, volve D. Pedro as próprias forças que destinára para a sua defeza pessoal contra a rebellada província, que viu mais uma vez derrubado o seu bello e glorioso estandarte republicano, e o sangue dos seus martyres regar este solo legendário, em cujo seio se entranha a de novo o gérmen que tinha de brotar viçoso e esplendido cinqüenta e cinco annos depois, no memorável 15 de novembro de 1889!

Urgia que Pernambuco pagasse caro, bem caro mesmo, o crime da sua rebeldia e effectivamente pagou.

Não bastara a cabeça dos seus martyres que rolaram do alto do patíbulo aqui e no Rio de Janeiro; os desterros, as persguições, a perda de grande numero de vidas nos combates e batalhas, os prejuízos materiaes e até mesmo o sacrifício da própria honra; não bastaram ainda os seus campos talados por numeroso exercito, a sua bella capital bombardeada pela esquadra imperial, e tantas outras misérias, estragos, ódios e vinganças a que se viu exposta a província para ferir-se-lhe ainda mais intimamente, mutilando-se o colosso, cortando-se-lhe as artérias, para extenuado de energias vitaes, jamais se erguer forte, potente e audaz, empunhando de novo, o lábaro redemptor de 1710, de 1800, de 1817, de 1824!...

A imperial vindicta não era uma novidade...

Já em 1817, o movimento republicano emancipacionista de Pernambuco, acarretou-lhe a perda de vasto território da Comarca do Rio de São Francisco, que annexado á capitania de Minas Gerais por Decreto de 28 de Maio, mas restaurada a autoridade real, foi aquelle acto revogado por um outro expedido em 22 de julho; veio porem logo após o Alvará de 16 de Setembro desmembrando de Pernambuco a rica e importante comarca de Alagôas, e elevando-a a categoria de capitania independente, o qual, em vista das circumstancias que em seu favor actuaram no real espírito do Senhor D. João VI, não foi revogado!

O precedente aberto em 1817, porem, foi reproduzido em 1824.

O imperador d. Pedro I não quis ficar atraz do rei D. João VI... O filho era digno do pai. – E para que o intruzo presidente de Pernambuco Manoel Carvalho de Paes de Andrade, com um punhado de militares e de gente miserável, sem luzes, sem costumes e sem fortuna, da cidade do Recife, e de três ou quatro villas circumsvisinhas, com os seus embustes e imposturas não arrastassem ao abysmo os povos innocentes do interior, principalmente o da bella comarca do rio S. Francisco, que punha a província em contacto com a de Minas Geraes; - baixa em 7 de Julho um Decreto ordenando que aquella comarca ficasse desligada de Pernambuco e unida á província de Minas Geraes, daquella data por diante, emquanto a Assembleia Geral  não organizasse um plano geral de divisão conveniente!...

E a Assembleia Geral legislativa do Brazil, na sessão de 1827 aprova o acto dictatorial de D. Pedro I, que lhe foi presente resolvendo que a comarca do Rio de S. Francisco, - que se achava provisoriamente incorporada á província de Minas Geraes, em virtude do Decreto de 7 de Julho de 1824, ficasse provisoriamente encorporada a província da Bahia, até que se fizesse a organização das províncias do Brazil; - cuja Resolução sanccionou o imperador por Decreto de 15 de Outubro de 1827! 

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São decorridos setenta e dous longos annos, e eis que, em fim, soa a hora da reparação do crime nefando, da felix culpa dos pernambucanso, quando em sessão do Senado Federal de 26 de maio de 1896, levanta-se o illustre senador pernambucano Dr. João Barbalho Uchôa Cavalcanti e apresenta o seguinte projecto:

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Entre os meios de repressão empregados conta os revolucionários de 1817 e de 1824, o governo de então houve de recorrer ao desmembramento de uma parte do território pernambucano.

Era preciso, por todas as maneiras, enfraquecer o povo altivo e brioso que tão cedo começara a dar explendidos exemplos de patriótico ardor e heroísmo. Não se julgaram bastantes as medidas postas em pratica contra os patriotas; a tyrania entendeu punir o próprio chão que elles pisavam e cortou um larga porção do patrimônio territorial da heróica província.

Em 1817, o território da antiga comarca do Rio S. Francisco fora manda annexar a província de Minas Geraes, ficando, porém, sem vigor essa determinação por haver terminado a revolução.

Isto se ver do Decreto de 22 de Julho de 1817 e é mencionado no Atlas do Imperio do Brazil por Candido Mendes, pag. 14.

Em 7 de Julho de 1824, foi expedido o seguinte decreto:

Tendo chegado ao meu imperial conhecimento que o intruso presidente de Pernambuco Manoel de Carvalho Paes de Andrade, que não tem podido seduzir até hoje mais que um punhado de militares e de gente miserável, sem luzes, sem costumes e sem fortunas, da cidade do Recife e de três ou quatro villas circumsvisinhas, - procura levar agora, a todos os pontos da província os mesmos embustes e imposturas, que temerariamente, tem assoalhado, mandando emissários para arrastarem ao mesmo abysmo, que o espera, os povos innocentes do interior a quem tão difficilmente chegam noticias do verdadeiro estado das cousas publicas, que elle cautelosamente occulta ou desfigura: E devendo, como Imperador e Perpetuo Defensor do Imperio, empregar todos os meios possíveis para manter a integridade delle e salvar meus súbditos do contagio da seducção e impostura, com que o partido demagogo pretende illaqueal-os: E considerando quão importante é a bella comarca denominada do Rio S. Francisco, que faz parte da província de Pernambuco e a põe em contacto com a de Minas Geraes, e o grande cuidado que devem merecer-me seus habitantes pela constante fidelidade e firme adhesão que tem mostrado á sagrada causa da independência e do Imperio e até pelos sacrifícios que teem feito a favor della:

“Hei por bem com o parecer do meu conselho de estado, ordenar, como por este ordeno, que a dita Comarca do Rio S. Francisco seja desligada da Provincia de Pernambuco e fique, desde a publicação deste decreto em deante, de cujo presidente receberão as autoridades respectivas, ordens necessárias para seu governo e administração provisoriamente e enquanto a assembléia, próxima  a installar-se, não organizar um plano geral de divisão conveniente.

Ficará a dita Comarca, como até aqui sujeita em seus recursos judiciaes a relação da Bahia”.

E a assembleia geral legislativa do império á qual foi presente esse acto dictatorial adotou a resolução que foi sanccionada nos seguintes temros (em15 de Outubro de 1827):

“Tendo resolvido a assembléia geral legislativa que a comarca do Rio de São Francisco, que se acha provisoriamente incorporada á província de Minas Geraes em virtude do decreto de 7 de Julho d e1824, fique provisoriamente incorporada á província da Bahia, até que se faça a organisação das províncias do império:

Hei por bem, sancionando a referida resolução, que Ella se observe e tenha o devido cumprimento”.

Mas se em 1817, tendo cessado a revolução não chegou a consumar-se e ficar prevalendo o esbulho, outro tanto não sucedeu em 1824.

O Poder Legislativo, em vez de annullar o acto despótico do imperador, houve de aproval-o a título provisório e o attentado ficou assim subsistindo, maior sendo ainda então o rigor empregado contra a província que commettera o crime de constituir-se em governo republicano.

Ora, hoje que o Brazil todo é réo desse mesmo crime, Felix culpa! Hoje que temos por forma de Governo a República Federativa que os revolucionários de 1824 proclamaram, fizeram vitoriosa (comquanto por mui pouco tempo subsistisse) regaram com o seu sangue e dignificaram com o seu martyrio, - levantam-se exigentes a historia, a justiça, a razão patriótica a reclamar a restituição devida, a integração do território pernambucano, incorporando-se-lhe essa parte de que a Bahia não é proprietária, mas simples detentora, pois só a titulo precário e rescendivel a possue.

E se a Monarchia é a força e a República é o direito; se esta tem por base a virtude, com ensinam publicistas, a restituição de que se trata torna-se irrecusável sendo simplesmente a volta do alheio áquelle cujo é.

Assim que para, fazendo cessar o clamoroso esbulho, chegar-se a esse acto de reinvindicação para consumar-se essa restituição pela qual a um tempo bradam o direito, a consciência nacional e a memória dos que se sacrificaram pela liberdade e pela República, que hoje, victoriosa não deve ser ingrata, apresento, como reparação histórica e solução de sagrada divida, o seguinte:

 

PROJECTO DE LEI

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1.° É restituído e fica definitivamente pertencendo ao Estado de Pernambuco o território da antiga comarca do Rio S. Francisco, que, provisoriamente, fora annexado á província da Bahia, pela resolução legislativa de 15 de Outubrod e 1827.

Art. 2.° São revogadas as disposições em contrario.

Sala das Sessões, 26 de maio de 1896. – João Barbalho.

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São decorridos setenta e dous longos annos do esbulho que soffreu Pernambuco de uma grande e importante parte do seu território, sem que esse caracter de provisório, com que foi feito, tivesse sancção definitiva, nem tão pouco attingido ainda o percurso de cem anos de posse não constestada para o bom direito da Bahia á sua pretensão! 

Veio a Republica em 1889, em glorificação do ultimo movimento republicano de Pernambuco em 1824 e de todos aquelles que se levantaram em prol da mesma Idea na pátria brasileira, desde o ano de 1710, em Olinda, em pela primeira vez se ouvio soar o nome Republica no Brazil, até 1835-1843 nos campos do Rio Grande do Sul, quer proclamando com Ella a sua emancipação política, quer para derrubar a monarchia; e os martyres que expiaram em holocausto o crime da sua rebeldia, esses réprobos, esses condemnados ao opprobio, esses proscriptos da pátria, já tiveram a sua rehabilitação histórica e moral, pela sagração universal republicana, - Heróes, de Benemeritos da Patria!

E agora, depois da rehabilitação moral da Republica pela Republica, Pernambuco reclama a integralisação do seu território, arrancado despoticamente, dictatorialmente, pelo Imperio, duas vezes provisoriamente, como pena imposta á sua rebeldia proclamando as liberdades pátrias em 1824, desfraldando a gloriosa bandeira da Confederação do Equador! 

É a Republica que apella para a Republica, de um acto bárbaro, tyranico de um rei!... E a Republica, cremos firmemente nos seus princípios, na sua moral, na sua coherencia, não sanccionará jamais os crimes dos reis, incorrendo, como elles, nos mesmos crimes, nas mesmas penas!

 

E os Martyres republicanos da Confederação do Equador proclamada em Pernambuco em 1824, apellaram para a Republica Brazileira proclamada em 1889, da pena opprobriosa com que a tyrannia real puniu a sua rebeldia, arrancando da sua terra, - dessa terra heróica e legendaria, odiada dos reis pela sua altivez e patriotismo, e ainda pelas suas idéias republicanas, desde o primeiro movimento emancipacionista de 1710, até a Confederação do Equador em 1824 – essa bella porção do seu territorio, provisoriamente encorporada a um estado, que para ser grande não precisa de alheio!

 F. A. Pereira da Costa.